Visibilidade trans: Uma Apresentação

Vitoria Faria
4 min readJan 22, 2021

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Então, é Janeiro, mês da visibilidade trans, sinto que tenho que fazer algo em relação a isso, então vou tentar escrever alguns textos para as pessoas que eu conheço que estão fora da bolha do Transtwitter.

Aqui vai o primeiro.

Incomum

Talvez eu pareça uma pessoa muito diferente e única para vocês, caras pessoas do face e de outros cantos da realidade. Eu sei que, infelizmente, para muitos eu sou a única mulher trans que vocês conhecem pessoalmente. Imagino quantos de vocês já pararam pra pensar que um dia isso também já foi verdade pra mim, por anos, décadas, eu fui a única travesti que eu conhecia pessoalmente.

Secretamente carregava a ansiedade de que nunca me encaixaria de verdade em nenhum grupo, que eu era simplesmente diferente demais. Sempre carreguei que eu era uma mulher, mas eu nunca exatamente me encaixei em estereótipos de feminilidade, ou nos estereótipos do que eu acreditava que eram as travestis.

É difícil expressar quão difícil é crescer sem referências, ou pior, todas as referências do que você sabe que é associadas a tudo que é (supostamente) mais perigoso e auto-destrutivo.

Pois bem, um dia não deu mais pra segurar, eu tinha que admitir pra mim mesma sobre quem eu era. Nesse caminho tive o privilégio de receber conselhos de amigos maravilhosos, e um que foi bem acertado: procurar comunidade. Funcionou, até bem demais.

Comum

De um contato pra outro, eu acabei caindo em um grupo do Telegram, originalmente voltado para pessoas trans que usam Twitter, mas acabou se tornando um grupo de pessoas trans em geral. Eu não tenho palavras para descrever o quanto essa galera me ajudou nos estágios inicias da minha transição. Como falar com a minha família? Como falar com meus colegas de trabalho? Como retificar meus documentos? Como começar o tratamento hormonal? Não teve etapa que eles não me empurraram de pouquinho em pouquinho pra cima, e por isso serei eternamente grata.

Porém, este não era apenas um grupo de pessoa trans, existiam claros padrões que se repetiam, que cada membro acabava percebendo e se divertia com isso.

Qual era o perfil das pessoas desse grupo? Trabalhar com programação ou tecnologia de alguma forma. Ter praticado alguma arte marcial. Jogar RPG. Ler bastante. Resumindo, uma galerinha um tanto nerd.

Fico imaginando o motivo que causou isso, talvez o fato do Twitter ter se tornado uma rede relativamente elitizada nos últimos anos. Mas independente da causa, o efeito era claro.

Pela primeira vez na minha vida, eu não só me encaixava em um grupo, eu era o estereótipo da pessoa desse grupo, eu marcava todas as caixinhas, eu era pra todos os efeitos uma pessoa comum.

Outra coisa que chamava atenção, é que era raro achar uma pessoal hetéro no grupo, a maioria se mostrava bi ou homossexual, e através dessa galera fui apresentada ao mundo das mulheres trans sáficas do Twitter.

Por que resolvi tocar nesse ponto? Você pode estar se perguntando. Bem, existem pessoas contrárias aos direitos das pessoas trans, digamos assim. E elas costumam inventar rumores absurdos sobre nós. O rumor que sempre mais me fascinou era o de que “mulheres trans não se relacionam com outras mulheres trans”.

Ao mesmo tempo que me fascina, me entristece profundamente, pois indica o quão distantes e alienadas grandes parte das pessoas estão da vivência trans. A única forma de acreditar nessa mentira absurda é literalmente não nos conhecer… O que… É a realidade de vocês, não é?

Qual é a verdade? É simples, nós somos legião, todo dia sou soterrada de imagens de casais trans sáficos obscenamente felizes, e nada coloca o mesmo quentinho no meu coração.

Invisível

Por mais difícil que seja, enfrentamos o fato de que agentes de poder na nossa sociedade sabem que é do interesse delas manter nossa realidade distante. Como algo que pudesse ser facilmente apagado da mente do trabalhador comum, algo que não importa.

Ignorando o fato de que, afinal, nós somos o trabalhador comum, e nossa luta é a mesma.

Por motivos que abordarei em outro texto, sabem que somos uma ameaça a suas estruturas de poder, e farão de tudo para manter os estereótipos negativos que nos cercam. Insistirão incansavelmente na tentativa de vender a noção de que somos pouco mais do que objetos caricatos, fetichizados e desumanizados.

Visível

E é exatamente por isso, que é importante frisar que o que falo aqui não é nenhum retrato jornalístico de alguma cabala secreta.

Nós estamos aqui, sempre estivemos. Lutamos cada guerra, enfrentamos cada crise e lutamos como linha de frente na busca de cada direito, e não apenas os que são peculiares a nós. Estamos em todas as áreas vitais à sociedade e assim permaneceremos.

Pessoas trans, no meu caso, mulher e travesti, dispostas a falar sobre suas vivências sempre existiram. Se vocês nunca pararam para prestar atenção, convido-os a conhecer mais sobre como navegamos pelo mundo. Não como figuras fetichizadas e eternamente misteriosas, mas como pessoas. E se não é assim que vocês nos veem, sinto informar, mas estão lhes fazendo de trouxa.

Mas tudo bem, até eu um dia fui essa trouxa. Existe saída para esta armadilha, que no fundo sempre foi frágil, construída por nada mais do que mentiras.

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Written by Vitoria Faria

(ela/dela) - Súcubo dorky que gosta um pouco demais de jogos de mesa - Faz outras coisas na vida, mas raramente fala sobre - Travesti, sáfica e poliam

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