Sunstone e eu

Vitoria Faria
3 min readApr 6, 2023

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Lisa e Ally sendo divas na capa do primeiro volume

Recentemente a IndieVisivel Press anunciou que vai trazer Sunstone localizado para o Brasil, o que com certeza é uma notícia excelente, e acabou me colocando refletindo sobre minha relação com essa obra.

Se você não sabe do que se trata, Sunstone é um quadrinho de romance erótico BDSM por Stjepan Sejic, em que acompanhamos um pouco da vida de duas mulheres que se descobrem no mundo do kink e acabam também se descobrindo apaixonadas. Também vemos um bocado de suas outras relações e da comunidade que constroem nesse meio.

Até hoje eu acho fascinante como o Sejic simplesmente destrói o estereótipo de que homens não conseguem escrever um romance sáfico, muito disso se deve, ele mesmo comenta, ao fato de que sua esposa, também quadrinista, opina bastante na construção da história e das personagens. Mas eu tenho certeza que não é o único fator relevante a isso, às vezes simplesmente ver mulheres, e mesmo mulheres em situações sexuais, como pessoas, já faz uma enorme diferença. Isso não deveria ser difícil, mas vocês sabem em que mundo vivemos.

Nem tudo é perfeito, é claro, a fandom do Sejic sempre brinca que ele só sabe realmente desenhar três pessoas, que tem corpos bem próximos do padrão de beleza corrente, seria legal ver um pouco mais de diversidade em seu traço, com certeza. Mas essa questão não anula tudo que faz dessa obra incrível e impactante como ela é.

As personagens são visceralmente reais, e é impossível não nos colocar no lugar delas enquanto acompanhamos suas histórias. Eu me lembro de uma das primeiras cenas do quadrinho, quando a Lisa chega na casa da Ally e, morrendo de nervosismo, só consegue, à princípio, perguntar onde fica o banheiro. Acho que eu nunca me identifiquei tanto com uma situação em um quadrinho em toda minha vida. E pra uma jovem trans que não havia se descoberto completamente na época, isso foi muito confuso.

Era visceralmente doloroso tentar ler esse quadrinho antes da minha transição, em tantas dimensões que é difícil explicar. Minha cabeça me colocava dentro dessas personagens, e ao mesmo tempo que elas eram tudo que eu era por dentro, elas pareciam tão infinitamente distantes do que a minha vida era e eu acreditava que podia ser. Isso levava a uma disforia intensa, das mais fortes que já vivi.

Fast forward para muitos anos depois, já tinha começado a minha transição, acabo esbarrando com os volumes do quadrinho na Amazon, eu não precisava comprar essas coisas, teoricamente tudo sempre esteve de graça disponível no DeviantArt do Sejic, mas quem me conhece sabe que eu gosto de colecionar esse tipo de coisa, e também apoiar esse tipo de artista como consigo.

Eventualmente os volumes chegaram, mas também era outra fase difícil da minha vida, e também não conseguia lê-los de fato sem despertar muita dor em mim, mas por outros motivos dessa vez.

Era o início da pandemia, quando estávamos isolados das piores maneiras. Isso foi muito cruel para uma mulher trans que tinha acabado de começar a transição. Logo quando eu finalmente me permiti explorar e conhecer o mundo como quem realmente sou, o mundo se fechou pra mim, de maneira brusca e sem sinal de fim. Foram meses realmente desesperadores. Eu não conseguia olhar pra esses quadrinhos sem me lembrar de toda essa vida que me foi negada, e que talvez, era tarde demais, era algo que eu nunca ia sentir de verdade, esperança foi um recurso caro naquela época.

Fast forward para alguns anos depois, aqui estou, muitas vezes vacinada, com relações maravilhosas das quais me orgulho de muitas maneiras. Às vezes a vida melhora, por mais que boa parte do mundo e as redes sociais te insistam que não. É bom saber disso.

Finalmente consigo olhar pra esses livros com a leveza que eu sempre sonhei.

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Written by Vitoria Faria

(ela/dela) - Súcubo dorky que gosta um pouco demais de jogos de mesa - Faz outras coisas na vida, mas raramente fala sobre - Travesti, sáfica e poliam

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