Sobre os manifestos OSR

Vitoria Faria
5 min readMay 15, 2024

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Depois de ler o meu último texto aqui, em específico, o seguinte trecho:

Quem me conhece já sabe o tamanho da minha preguiça desse tipo de pessoa então não vamos nos alongar aqui.

Uma certa pessoa me disse "Mas eu quero ver esse rant", sigh, então vamos lá…

Os manifestos OSR

Capa de Principia Apocrypha
Ok, eu tenho que admitir que as artes da Evlyn Moreau são bonitas

Quando me refiro a manifestos OSR, estou me referindo principalmente ao Principia Apocrypha de Ben Milton e Steven Lumpkin e ao Quick Primer for Old School Gaming do Matt Finch, não eu não vou linkar essas desgraças, mas é fácil de encontrar se tiverem curiosidade.

Eles tratam de descrever os princípios de um estilo de jogo, que, segundo eles, se aplicam a jogos "Old School", no contexto, versões antigas de D&D.

Eu não gosto desses textos, então não vou me delongar muito em explicá-los em suas minúcias, se você não faz a mínima ideia do que eles tratam você pode fechar essa página agora e se esquecer desse conceito e sua vida provavelmente vai ser mais feliz assim.

Os problemas

Me adianto dizendo que não tem nada de novo ou radical na minha posição, muitos já o fizeram no passado, de várias maneiras. Autores notáveis no meio já escreveram livros inteiros ignorando ou subvertendo tais princípios, como Light Fantasy e Dark Dungeons X do Gurbintroll.

Dentre as críticas a estes manifestos, geralmente se reforça o quão anacrônicos e imprecisos o são. Eu gostaria de bater em uma tecla que não é sempre reforçada. Sejamos sinceras, esses manifestos existem principalmente como uma forma de gatekeeping para impedir que pessoas queer, mulheres e pessoas neurodiversas se interessem pelo hobby.

A "letalidade"

Em especial, as partes desses manifestos que denotam a suposta "letalidade" das versões antigas de D&D, e as conclusões apressadas e desajeitadas que tiram e extrapolam disso, são especialmente ajustadas para sugerir que esses jogos existem apenas para hominho afoito em reafirmar sua masculinidade frágil.

É engraçado o quanto até as partes mais conservadoras do próprio meio do OSR já estão de saco cheio de explicar que isso é um mito, e o quanto que isso assusta novos jogadores é um problema. "Não, esses jogos não são tão letais assim, pode jogar tranquilo" já virou um mantra em si mesmo no subreddit de OSR.

Sim, as versões antigas de D&D são mais letais que as mais recentes, mas se comparadas a outras jogos modernos como, por exemplo, jogos de terror ou de ambientação mais tensa da Free League, como Alien e Mutante Ano Zero, realmente não são notavelmente letais. Essas partes destes manifestos parecem implicar que a única experiência de jogo do leitor é D&D 3.5 ou 5e, o que já insultante em si mesmo, por mais estatisticamente provável que seja.

Mas qualquer pessoa que já jogou tais jogos recentes da Free League já notou um padrão, por mais letais que sejam, ainda existe um foco grande em criar, com a personagem, sua origem, seus laços e uma personalidade distinta.

O maior veneno dos manifestos é sugerir que, para personagens de vida curta, tais coisas não importam, ou absolutamente só devem surgir de maneira emergente durante o jogo. "Escrever um backstory" é quase considerado o maior dos pecados. Sugerem que seria um "desperdício" pois o "esforço" seria desperdiçado com a morte da personagem, o que: 1. Implica que o suposto jogador tenha a inteligência emocional de uma criança de 5 anos, e 2. exclui ao menos a possibilidade de alguém sentir que escrever um backstory seja uma atividade lúdica em si mesma.

Sejamos sinceras, isso existe para afastar mulheres e pessoas queer que gostam de encarar RPGs como meio de auto-expressão, ponto. Sugerir diferente disso é auto-enganação ou desonestidade intelectual pura e simples.

Habilidade do jogador vs habilidade da personagem

Outro lugar comum desses manifestos é apontar que "o jogador deve ser desafiado, não sua ficha", alguns chegam ao extremo de sugerir que ao menos usar as regras deve ser considerado um estado de falha, e que assim todos os números devem ser hostis aos jogadores o tempo todo (o que aliás, não é como D&D clássico funciona, a menos que você ignore todas as dicas de como criar desafios justos e tacar um bicho de 20 dados de vida contra personagens de nível 1… O que é um lugar comum em aventuras escritas por quem se sente representado por tais manifestos… quem diria…).

Não é necessário muito esforço para concluir o quão hostil é este estilo de jogo para pessoas neurodiversas, especialmente pessoas não verbais. Dizer que tudo deve ser resolvido por interpretação e que as habilidades fictícias de uma personagem não importam é uma boa maneira de excluir também qualquer pessoa que não esteja imediatamente habituada e confortável no ambiente social do jogo. E também não é necessário muito esforço para concluir que essa não era o objetivo dos jogos originais como escritos (as personagens, afinal, tem valores para carisma e inteligência dissociados da pessoa que de fato está jogando).

Sendo justa, ao contrário da martelação sobre mortalidade e dificuldade do ponto anterior, eu acredito que o foco em habilidades de jogador é algo que surgiu com intenções melhores além da pura auto-afirmação masculina brocha. Existem bons argumentos de que jogos puramente baseados em "apertar botões na ficha" perdem alguns elementos de imersão e contato direto com a diegese, assim, um resgate de uma interpretação livre baseada nas brechas das regras pode ser bem vinda. O problema só ocorre quando isso é extrapolado a extremos, ao ponto de tornar a experiência propositalmente excludente.

E aqui estamos hoje

Ainda existe, é claro, uma minoria barulhenta que insiste em proclamar os princípios destes manifestos como verdade absoluta.

Felizmente, o mundo dos retro-clones já se afastou do zeitgeist do ápice de influência deles a um tempo. Eu argumentaria que não teria crescido e se diversificado tanto quanto nos últimos anos se não tivesse.

Eu pensei em terminar listando alguns exemplos de jogos e materiais recentes que subvertem as expectativas destes manifestos, mas talvez isso distrairia do ponto de que, honestamente, nem os D&Ds velhos originais foram feitos para serem jogados assim, e não é preciso mais do que uma passada rápida por umas poucas edições velhas da revista Dragon para ver que definitivamente não eram jogados assim.

É claro, vou continuar escrevendo sobre essas coisas por aqui, eu já fiz isso algumas vezes, e não pretendo parar tão cedo. Vou fazer uma resenha/comentário sobre Beyond the Wall em breve, que é um bom exemplo de como aplicar formas de construção de personagem mais modernas, como a Free League gosta de fazer, em jogos mais clássicos. Mas isso é uma história para outro dia.

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Written by Vitoria Faria

(ela/dela) - Súcubo dorky que gosta um pouco demais de jogos de mesa - Faz outras coisas na vida, mas raramente fala sobre - Travesti, sáfica e poliam

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