Sobre a Era dos Presságios Perdidos
Existem muitos fatores e características que me fizeram apreciar a ambientação oficial de Pathfinder, carinhosamente conhecida como “Golarion” pela maior parte de sua fandom (nome do planeta central à narrativa), mas oficialmente conhecida como “Presságios Perdidos”, à partir da Segunda Edição.
Eu já compartilhei, em um podcast com o Noper e o Xezz sobre como Pathfinder me fisgou com o texto descritivo da Súcubo do primeiro bestiário, esperei a velha trasheira que costumo ver em outros manuais mas recebi um texto claramente preocupado com suas implicações dentro e fora da ficção, especialmente no que se trata a questões de gênero. Desta supresa meu desejo de aprender mais sobre ambientação despertou, e daí começou uma longa e não linear aventura de descoberta através de vários suplementos, módulos e wikis dedicados ao cenário.
Já me dediquei a falar sobre a maravilhosa representatividade de pessoas transfemininas na ambientação. É inegável o quão importante isso é para mim, poucas coisas aqueceram meu coração como ver a capa do livro dos Cavaleiros de Ultimuro pela primeira vez, uma mulher trans, mais velha, uma mãe, orgulhosamente limpando a sua espada das vísceras de um morto-vivo. Me entristece o quão pouco outras editoras tomaram nota desses esforços e tentaram se equiparar, mesmo com comunidades queer tão fervilhantes. Tendo isso em vista, essa preocupação está longe de ser meu único motivo para gostar tanto desse lore.
Diversidade
O foco em diversidade não se concentra apenas em recortes da população LGBTQIA+, vemos representadas, nas artes e nas personagens, todo tipo de pessoa e povo. Etnias, credos, modos de vida e organizações sociais de todos os tipos colorem as páginas de cada suplemento lançado, cada uma trazendo suas histórias, com um nível de profundidade e respeito que eu ainda não vi em outras ambientações de fantasia equivalentes.
Comunidades tradicionais de cada canto do mundo não são apenas um cenário raso para atos de colonialismo, são desenvolvidas como as sociedades complexas e auto-suficientes que são, afinal, como diz um importante trecho do livro sobre a Vastidão Mwangi, o seu exótico é a existência de alguém.
Cores
Todas essa diversidade torna o mundo um lugar rico, colorido e cheio de vida, que convida à aventura como nenhum um outro, não é atoa que o cenário já conta com um Guia de Viagem, pois viajar por todas essas terras, conhecer seus sabores e nuances é um apelo real que é muito bem explorado e aprofundado.
Dos mistérios mágicos de Nex, ao steampunk de Alkenstar, passando pela complexidade social e política dos Reinos Ribeirinhos, até a jóia africanista da Magaambya (uma universidade mágica feita direito), cada local é um convite farto à imaginação.
Há quem critique o cenário por isso, o chamando de uma grande “kitchen sink”, talvez um deserto com uma nave alienígena caída e depredada por nativos, uma revolução francesa que nunca acaba e um governo absolutista diabolista sejam demais na mesma ambientação para algumas pessoas, mas, acredito eu, tudo isso, por mais bizarro e contraditórios que pareçam, são bem amarrados por temas e personagens em comum.
No centro da narrativa das aventuras de eventos organizados oficiais, existe a Sociedade Pathfinder, cuja missão envolve justamente conhecer e documentar a diversidade desse mundo, em que poucos conflitos acontecem de maneira realmente isolada, sem reverberar por nações tanto vizinhas quanto distantes.
Eventos como abertura da Ferida do Mundo e destruição de Ultimuro consumiram recursos e forças de todo um continente, reestruturando hierarquias e equilíbrios de poder. Mesmo uma revolução falha em uma cidade de uma nação tirânica avançou ao engatilhar e inspirar outro movimento que de fato foi bem sucedido em outra parte do mapa.
Progressão
Como todas as Trilhas de Aventura publicadas são canônicas na narrativa, esse é um mundo que avança e muda com o tempo, nenhum desafio é realmente eterno, mas também nenhuma paz e segurança é mantida sem esforço ativo daqueles que a desfrutam, mas como os finais canônicos são geralmente finais felizes, acompanhamos um mundo que de fato melhora aos poucos.
Esta ambientação é tão vasta e cheia de particularidades, que já vi muitos a descreverem como um cenário de terror, e de fato algumas aventuras se valem bastante do macabro e do sinistro. Porém, todo esse horror se vale justamente do contraste com o que há de mais colorido no cenário, existe o que vale a pena proteger e ideias que valem a pena defender, assim nunca se perde no “grimdark apático” que vejo em outros mundos.
Deuses
Seguindo a tradição de um d20 clássico de fantasia, a ambientação apresenta panteões de divindades, que objetivamente compartilham poderes e bençãos a seus seguidores. Essas divindades são tão diversas quanto o mundo que regem. Naturalmente, cada região ou recorte do cenário possui seu próprio panteão, com deuses diferentes, ou versões específicas de divindades mais gerais.
O texto é mais cuidadoso com termos que implicariam que um panteão seria objetivamente “melhor” ou “mais verdadeiro” que outro, e até oferece várias histórias de criação diferentes. O poder dos deuses não é diretamente atrelado ao seu número de seguidores ou mesmo o seu fervor. Deuses poderosíssimos atuam sem quase nenhum seguidor, enquanto divindades mais novas e menos experientes contam com legiões ao seu lado. Algumas divindades demonstram até ressentimento daqueles que os adoram.
É notável o quanto os autores não se acanharam em atrelar seus próprios valores nas divindades boas do cenário, o que eu pessoalmente julgo como positivo e honesto, considerando todos os recortes entre aqueles que trabalham no texto. Assim vemos subversões de muitas expectativas conservadoras. Vemos divindades benignas em defesa de positividade sexual, trabalhadoras sexuais, estruturas familiares que fogem do padrão nuclear, formas de relacionamentos diferentes da monogamia, todo tipo de recorte de identidade de gênero e de outras expressões de diversidade humana que infelizmente ainda são estigmatizadas em nossa sociedade.
Conclusão
É realmente muito catártico dar uma nerdada boa sobre as coisas que gostamos sem julgamento (acredite, não vou compartilhar esse texto no Twitter). É, claro, o cenário não é perfeito e ainda tem muito a melhorar. Toda a comunidade se lembra de quando lançaram uma aventura sobre brincar de policial no pior momento possível, entre outros eventos desagradáveis. Fico feliz de me encontrar rodeada de pessoas que compartilham desse mesmo gosto sem abandonar uma visão crítica dele. Mas, novamente, aqui não é o Twitter e eu não preciso pedir desculpas por gostar de algo imperfeito.
Não estou aqui pra puxar saco da Paizo ou da New Order e implorar pra trabalhar de graça pra qualquer um que seja. O entusiasmo sincero por esse mundo imaginário é realmente uma das minhas maiores paixões ultimamente, e espero poder continuar acompanhando e explorando esse mundo fantástico com meus amigos que consegui nesse caminho.