Súcubos e eu
Quem me acompanha por aqui, ou em qualquer nível da minha vida, sabe que eu tenho uma fascinação e identificação enorme com o conceito de súcubo e que isso costuma catalisar muitos dos meus impulsos criativos, mesmo assim, resolvi gastar um tempo para falar mais explicitamente sobre isso.
Afinal, uma amiga minha foi me visitar na minha casa e ao ver algumas das miniaturas que eu pintei, me disse: “Você tem uma certa ligação com esse tipo de criatura, não é mesmo?”. E isso depois de jogar em uma campanha de RPG que estou narrando que envolve uma família de quatro súcubos como parte importante da trama, então acho que sempre vai ter alguém que não se tocou muito disso ainda.
Acredito que tudo começou quando eu era bem nova e fui jogar Marvel vs Capcom pela primeira vez, tinha algo com a Morrigan que simplesmente clicou comigo e eu era simplesmente incapaz de entender ou descrever naqueles tempos. O design e expressividade da personagem é simplesmente icônico demais, sem medo de ser sensual e feminino mas ainda com uma vivacidade cartunesca característica da Capcom da época. Fui pesquisar o que demônios ela deveria ser afinal, e aí, já era.
Talvez uma das minhas memórias mais dolorosas pré-transição foi quando eu tentei explicar essa fascinação para minha ex daquela época. Ela rapidamente descartou todas as nuances e imediatamente rotulou como coisa de nerdolinha punheteiro tarado que não merecia ser levada à sério ou explorada. É muito triste o quão rápida é nossa sociedade em apontar tudo que tem uma faceta sexual mais óbvia como algo ruim, sujo e depravado. E bem, acho que vem exatamente daí a fonte maior dessa identificação.
Eu sou uma travesti, eu sou algo ruim, uma criatura suja e depravada, aos olhos de quem tem mais poder na nossa sociedade e de quem é persuadido por essas pessoas. Eu sou uma fonte de caos, cuja própria presença e existência consome e destrói o próprio tecido da sociedade. Se relacionar comigo de qualquer forma, por mais sutil que seja, é o próprio caminho da ruína e degeneração, que vai consumir a vida, a sanidade e a alma do "cidadão de bem" que cair nessa tentação. Pois, como tudo que é tabu e proibido, eu sou desejada pelos bons homens, mas nunca abertamente, apenas como a vergonha mais profunda e escondida, nunca a ser revelado, afinal, essa tentação é pouco mais que uma fraqueza, um desvio punido com a vitalidade e energia de quem se atreve a se saciar nesse raro prazer.
É… Não é difícil de entender de onde vem a identificação com esse tipo de criatura partindo de pessoas transfemininas. O imaginário popular construído sobre nós é cercado de sexo, luxúria e ruína ao ponto de literais encarnações do sexo, luxúria e ruína nos parecerem… Irmãs.
Pessoas "comuns" provavelmente veriam essa associação como derrogatória, e certamente vem de realidades muito difíceis e sombrias, para se dizer o mínimo. Apesar disso, não consigo deixar de ter um enorme carinho por ela, afinal ela diz muito sobre quem eu sou e o que eu vivi. De muitas formas, corpo, mente e alma, eu realmente sou uma súcubo.
Talvez o mundo realmente precise um pouco mais de sexo, luxúria e ruína, afinal. De certa maneira, nós realmente desafiamos muito do status quo da estrutura do mundo que vivemos, e isso é uma coisa boa. Esse mundo é injusto com muita gente, e deve ser desafiado e questionado por isso. Se nós jogamos na cara da sociedade muitos problemas estruturais que ela tem, que tudo fique muito claro. Vão tentar nos silenciar e colocar o gênio de volta na garrafa, mas sabem que não podem fazer isso por muito tempo, por isso, não medem esforços para nos destruir. Mesmo assim, nós vamos continuar aqui, mesmo se nos exterminarem por completo, vamos aparecer de novo na próxima geração, afinal, somos a encarnação de uma verdade intrínseca da humanidade.
É uma identidade libertadora, parando pra pensar, e simplesmente me entregar a ela foi das melhores decisões que eu fiz na minha vida recente. Muito pouco te segura quando você é o próprio pecado, e assim, sigo sem amarras.