OSR e contos de fadas
Contos de fadas sempre foram, em algum nível, uma forte influência para D&D clássico e jogos de fantasia em geral, as próprias definições de contos de fadas e fantasia se misturam e mostram uma interseção forte, dependendo da análise e do autor. Criaturas folclóricas como gnomos, trolls, fadas, e, é claro, dragões, sempre marcaram uma presença firme, até mesmo central, nas ambientações explícitas e implícitas desse tipo de jogo.
É claro, com a diversidade de tradições e movimentos literários, a ideia de “conto de fada” acabou tomando uma conotação mais própria, que ainda dialoga com outros gêneros de fantasia mais específicos, como a “alta fantasia” de Tolkien e a “fantasia pulp” de Moorcock, mas possui uma identidade, linguagem e estética própria.
Quando me refiro a contos de fadas aqui, me refiro a minha própria definição, nada acadêmica, de histórias ambientadas em um mundo fantástico, em que o mundano, simples e familiar de uma vida rústica de povoados isolados e antigos interage com a magia e imprevisibilidade do mundo folclórico, que impõe obstáculos, provações e lições às protagonistas. No entanto, o fantástico e mágico, por mais estranhos e incompreensíveis que sejam, nunca são exatamente inesperados, pois vivem na tradição oral, na vivência e na visão de mundo, mesmo da personagem de vida mais mundana. Existem pontos de conexão entre os dois mundos que não são ignorados, manifestados em uma bruxa ou sacerdotisa local, um pequeno relicário dedicado aos espíritos da floresta, ou vivendo apenas na sabedoria popular da comunidade.
O conjunto de movimentos conhecido como “OSR”, que busca resgatar e experimentar com características e influências de D&D antigo, o faz de maneira nada homogenia. Assim, é fascinante ver seus vários ramos se aproximarem de diversas estéticas e tradições literárias. Muito já foi falado e discutido sobre os ramos que se apropriam mais do “grimdark” proveniente das influências mais próximas do terror, horror cósmico e fantasia estranha de D&D, ao ponto de que isso coletivamente se tornou o “rosto” do OSR para quem olhava de fora, mas nunca realmente foi o único.
Vamos parar para conversar aqui sobre os ramos que abraçam mais fortemente as influências folclóricas dos contos de fadas, e de como elas interagem com as regras e expectativas desse tipo de jogo.
Já é papo velho em círculos sobre design de RPG como as regras colorem muitas implicações do mundo que se desenha em suas aventuras. Sabendo disso, imagino que muitos torçam o nariz para a ideia de usar o que é basicamente D&D velho para rodar campanhas de contos de fadas. Vou defender aqui, que, talvez inicialmente até mais por acidente do que intenção, isso não é a loucura que parece.
D&D velho (da época da TSR) é muito criticado em alguns círculos por depender muito de “feast or famine”, em que poucos efeitos, ou resolvem completamente uma situação, ou não fazem absolutamente nada, assim não é exatamente ideal para combates épicos de alta fantasia e de outros gêneros. Porém, se você parar pra pensar, em contos de fadas, as histórias raramente se resolvem em confrontos equiparados. De certa forma, a surpresa do anticlimático e da trapaça é o que geralmente constrói os pontos de virada desse gênero, que também é povoado por protagonistas vulneráveis que, se voltando às versões mais tradicionais do gênero (o lobo mau nem sempre cuspia ou tinha a vovó retirada de sua barriga viva), às vezes morriam de formas brutais e inesperadas.
Outro fator que eu percebi na prática, narrando muito esse tipo de jogo: é mais fácil ensinar a ideia de que qualquer encontro pode ser potencialmente mortal se a primeira criatura encontrada for descrita como uma fada psicodélica. A maioria das pessoas já é meio treinada a simplesmente tentar matar goblins tolkenianos sem pensar muito, mas vão pensar várias vezes antes de se aproximar de um goblin feérico, mesmo se por trás dos panos, as estatísticas do jogo sejam as mesmas.
Assim, o que nunca realmente faltou, foram módulos e aventuras baseados nessa temática.
Um módulo que se situa nesse gênero muito próximo ao meu coração é o Blackapple Brugh de Kyle Hettinger, feito para Basic Fantasy. Um pequeno vilarejo nos limites da mata precisa lidar com um antigo senhor feérico selado em seu subterrâneo, que ainda tem seus meios de afetar o mundo exterior. O cenário é deliciosamente temático, completo com um montinho de fadas e faunos que trocaram de lugar com crianças pregando peças pela vila.
Como tudo de Basic Fantasy, pode ser lido gratuitamente, e como a base desse jogo é basicamente B/X, pode ser usado com qualquer jogo retrô mais “baunilha”. Quando eu mesma o narrei, eu usei Old Dragon 2, por ser mais acessível à galera da mesa que não tinha um nível muito avançado de inglês, e por já vir com a maioria das regras de casa que eu uso já integradas no sistema (vida cheia no primeiro nível, deixar a pobre da maga usar mais do que uma faquinha, etc). Infelizmente, por motivos de “vida adulta e agenda” nunca o terminamos, mas espero conseguir juntar mais um grupo pra isso o quanto antes.
É claro, não é só de módulos isolados que esse gênero vive, não posso deixar de falar de Dolmenwood, de Gavin Norman, autor de Old School Essentials.
Ambientado em uma mata inspirada por folclore britânico e contos de fada, o jogo oferece um cenário muito rico, perfeito para campanhas mais “sandbox”. Notável por oferecer classes e ancestralidades criadas para seu mundo, inclusive a oportunidade de jogar como as próprias criaturas feéricas das histórias, abandonando as pretensões antropocêntricas de outros ramos do OSR. Não existem tantos anões, halflings ou outros artefatos tolkienistas aqui, mas você pode jogar como uma fada gato, uma fada morcego, ou uma pessoa bode, se quiser.
O sistema também oferece muitas melhorias de qualidade de vida interessantes, como a centralização das jogadas de d6 em um subsistema unificado e uma versão das cinco jogadas de proteção clássicas pela primeira vez nomeadas de maneira descente, mas é melhor deixar os detalhes disso para uma conversa futura.
É claro, eu não posso deixar de falar de Beyond the Wall and Other Adventures, um jogo que já tem sua década de maturidade, mas foi lançado no Brasil recentemente ̶p̶e̶l̶o̶s̶ ̶s̶a̶f̶a̶d̶o̶s̶ ̶d̶o̶ ̶B̶r̶u̶n̶o̶ ̶e̶ ̶d̶o̶ ̶C̶a̶l̶v̶i̶n̶ ̶q̶u̶e̶ ̶s̶ó̶ ̶m̶e̶ ̶a̶v̶i̶s̶a̶r̶a̶m̶ ̶s̶o̶b̶r̶e̶ ̶o̶ ̶f̶i̶n̶a̶n̶c̶i̶a̶m̶e̶n̶t̶o̶ ̶d̶e̶p̶o̶i̶s̶ ̶q̶u̶e̶ ̶e̶u̶ ̶j̶á̶ ̶t̶i̶n̶h̶a̶ ̶c̶o̶m̶p̶r̶a̶d̶o̶ ̶o̶ ̶l̶i̶v̶r̶o̶ ̶g̶r̶i̶n̶g̶o̶,̶ ̶a̶i̶n̶d̶a̶ ̶e̶s̶t̶o̶u̶ ̶s̶a̶l̶t̶y̶ ̶s̶o̶b̶r̶e̶ ̶i̶s̶s̶o̶ pela Tria Editora.
Já escrevi sobre a um tempo atrás, então sinto que não preciso me alongar demais, Provavelmente é o jogo do gênero que mais se esforça para expressá-lo de maneira opinionada. A criação das personagens jogadoras é amarrada à criação da vila, que já começam motivadas a protegê-la e entrar no papel de uma protagonista clássica de contos de fadas.
Com o passar dos últimos meses acabou se tornando a minha forma de diversão preferida para uma tarde de domingo aqui em casa. Eu apontei no meu último texto sobre esse jogo não se destacava tanto como referência no zeitgeist do OSR, mas talvez isso não precise mais necessariamente ser verdade. Os anos passaram, e o mundo mudou um bocado na última década. Cheguei a conversar com o ̶s̶a̶f̶a̶d̶o̶ ̶d̶o̶ Bruno sobre como pode ter sido benéfico o lançar no Brasil logo agora, visto que esse tipo de jogo tem um pouco mais de visibilidade, e assim encontrou um público mais estabelecido, informado e disposto a o receber da melhor maneira possível. Não falta gente interessada em engajar com esse gênero de maneira criativa. Espero poder fazer parte disso ao máximo.