O velho teste de atributo rolando abaixo e a estética no RPG
Uma dos debates mais antigos no mundo do OSR e dos retro-clones trata do uso dos velhos (mas não tão velhos, como veremos a seguir) testes de atributo rolando abaixo do D&D antigo (e.g. se você tem 14 de destreza, você passaria num teste de destreza se tirasse 14 ou qualquer valor abaixo disso, em um d20, com uma falha para 15 ou qualquer outro número acima).
Nas primeiras edições de D&D, mais especificamente a caixa branca de 74, a versão básica de Holmes de 77 e o AD&D, também de 77, um sistema genérico para adjudicação de situações gerais simplesmente não existia. É conhecido que Gygax e sua turma geralmente usavam uma rolagem genérica de d6 em que decidiam o espaço de sucesso previamente (e.g. 1 em d6, 1–2 em d6, etc).
Não se sabe exatamente quando os testes de atributo de fato surgiram como regra de casa, mas a primeira vez que apareceram em uma publicação oficial foi na caixa básica de Moldvay de 81.
A treta
Vários ramos do movimento OSR tem uma grande picuinha com o uso dos testes de atributo, por motivos que variam dependendo de onde vem.
Alguns simplesmente são muito revivalistas e fazem muita questão de jogar da maneira supostamente jogada pelos criadores das primeiras versões. Alguns engoliram demais o ki-suco dos manifestos OSR, tendo um fetiche quase sado-masoquístico pela dificuldade, e assim uma chance inata de, na média, 50% de resolver a maioria das situações parece um absurdo.
Alguns chegam nas profundezas do ki-suco ao ponto de sugerir que uma forma geral de adjudicação não deveria existir pois tudo deveria ser resolvido no role-play e fora das regras e blah blah blah pois usar as regras é um estado de falha e blah blah blah. Quem me conhece já sabe o tamanho da minha preguiça desse tipo de pessoa então não vamos nos alongar aqui.
Outros tem considerações mais mecânicas e matemáticas sobre esses testes. Um problema que eu mesma já apontei aqui, mas que definitivamente não é o único, é que suas probabilidades são um tanto radicais em seus extremos (15% para 3 e 90% para 18), o que pode ser aliviado usando métodos de criação de personagem que proíbem ou desestimulam tais extremos, mas isso é uma conversa para outro dia.
É claro, também não falta quem defenda os testes de atributo, também por vários motivos diferentes, alegando que situações gerais devem ser resolvidas por algo mais desligado dos níveis mais ainda assim ligado às características inatas das personagens, que suas chances devem ser mais favoráveis pressupondo competência, etc e etc.
Mas existe um ponto nesse debate que é raramente lembrado, a questão estética.
A estética
Um blog post que inspirou esse texto foi Using Ability Checks in B/X de Mythlands. Em uma passagem, tradução livre minha, é dito:
Eu quero ter testes de atributo pela estética do jogo — os atributos são uma das características mais proeminentes da criação de um personagem e de sua ficha. Eles deveriam importar de alguma forma, por si só e não apenas como uma conversão para números diferentes. Devem existir momentos em que rolar 18 de Sabedoria para o meu guerreiro realmente se torna mecanicamente importante.
Isso realmente ficou comigo e eu passei meses matutando sobre, mas parando pra pensar, isso é realmente muito simples, vamos olhar para uma ficha de D&D básico clássico:
Quando você bate o olho nela, seus olhos rapidamente focam em duas sequências de números agrupados. Na parte mais central ficha.
Uma pessoa leiga rapidamente pensa "esses números devem descrever a personagem e suas habilidades de alguma forma".
Vamos focar nos números destacados em vermelho por hoje, os em amarelo também trazem um papo maravilhoso sobre estética, mas isso vai ser todo outro vespeiro então vamos deixar o grosso dessa discussão pra outro dia.
O que importa é, se imagine interagindo com o D&D original de 1974 pela primeira vez, rolando dados para cada uma dessas habilidades e as anotando na ficha em sua posição de destaque, você se pergunta exatamente como esse números interagem com as regras objetivamente, que tipo de rolagem de dados é associada a eles, até alguém dizer "há, eles não fazem nada durante o jogo, só servem pra te dar bônus de xp aqui e ali, e talvez um modificador de +1 em uma coisa ou outra, se forem muito grandes…"
Isso é, sem enrolar o papo, esteticamente brochante, é quase uma pegadinha de malandro visual. Acho que até hoje eu não conheci uma pessoa que não se sentiu um tanto traída ou confusa quando descobriu isso pela primeira vez.
É um dos muitos exemplos de como as primeiras versões de D&D, apesar de se argumentar que são matematicamente sólidas, também são esteticamente feias, o que invariavelmente afasta, e até mesmo assusta, qualquer um que não seja parte do nicho mais extremo e dedicado do revivalismo de regras, por um motivo ou outro.
Isso não invalida o fato de que as versões subsequentes que incorporam os testes de atributo rolando abaixo também tem suas problemáticas, e não é atoa que essa mecânica, depois de viver duas décadas fazendo seu papel, acabou sendo abandonada em favor do sistema d20, depois dos anos 2000…
…ou pelo menos assim foi nas mãos da WotC, mas isso nunca é a história completa. Muitos autores independentes descobriram todo tipo de forma criativa para manter ou reformar os velhos testes de atributo em seus jogos.
O retorno do que nunca foi
Dois jogos em particular, que por algum motivo compartilham o mesmo esquema de nomenclatura, reformam muito da estrutura do jogo para que os testes de atributo se tornem uma parte central da experiência, ao invés de apenas uma "gambiarra" potencialmente redundante, como era nos jogos originais.
O Whitehack reajusta todas as rolagens do jogo, como o ataque e a jogada de proteção, de forma a funcionar rolando abaixo do número alvo, sendo assim discutidas nos mesmos termos e passando usar a mesma nomenclatura para modificadores e outros fatores externos. Como forma de introduzir uma dificuldade externa na jogada, essa é tratada como um número baixo a ser superado pela rolagem, o que ficou conhecido como "sistema blackjack", em que se tem que rolar abaixo do atributo ou valor relevante, mas acima da dificuldade.
O Black Hack foi mais longe ainda, e substituiu quase todas as mecânicas do jogo por rolagens de atributo. Precisa fazer um ataque corpo-a-corpo? Esqueça a base de ataque, thac0 ou qualquer outra coisa, faça um teste de atributo de força. Vai receber um ataque? Esqueça de classe de armadura, você faz um teste de atributo de destreza. Quando uma dificuldade extra é necessária, lutando com uma criatura com mais dados de vida do que você, por exemplo, esse diferença é adicionada em seu teste, tornando-o mais difícil.
Fazer um contraponto entre esses dois jogos é realmente fascinante, apesar dos nomes similares, eles possuem estéticas completamente diferentes. Um parece um texto de GameFAQs com a pouca arte que tem em ASCII, o outro tem uma maga que é basicamente uma personagem do Gorillaz com os peitos de fora. Mas em uma coisa ambos os textos absolutamente concordam, mesmo que implicitamente, que é a importância da estética, tanto de maneira mais óbvia quanto dentro das regras em si. E nada melhor do que seus respectivos usos do velho teste de atributo para ilustrar isso.