O curioso mundo dos retro-clones de D&D
O hobby do RPG como conhecemos hoje se originou de uma maneira curiosa e um tanto humilde, quem já teve a oportunidade de ao menos passar o olho nas publicações originais de D&D deve ter percebido que a qualidade é, digamos assim, um tanto amadora para padrões atuais.
No fundo era um bando de hobbista que não tinha muita formação formal para escrever de maneira profissional, e as ferramentas disponíveis para esse tipo de trabalho não ajudavam muito.
O resultado é um tanto de texto confuso cujos detalhes de interpretação são motivo de debate até hoje, o oposto de algo que eu chamaria de acessível. Ainda assim, essas palavras emboladas e misturadas de alguma forma se conectaram com o zeitgeist da época e rapidamente conquistaram o mundo.
Felizmente, um movimento, ou uma coleção de pequenos movimentos, se dedicou a traduzir os conceitos e ideias desses pequenos tomos ancestrais para as linguagens e maneirismos do mundo atual. Chamamos essas obras de retro-clones. Hoje vou falar um pouco sobre algumas e porque as considero leituras fascinantes.
Old-School Essentials: Classic Fantasy
Dentre os retro-clones que vou comentar hoje, o Old-School Essentials: Classic Fantasy é o mais fiel a versão de D&D que tenta reproduzir, a B/X de 1981, assim temos todas as suas idiossincrasias. Tabela de porcentagem para ladino, os cinco saves originais com seus nomes questionáveis, está tudo aqui. Assim, se o seu objetivo é realmente ter uma janela fiel sobre como D&D básico antigo se comportava, esse com certeza é o melhor caminho.
O diferencial aqui é a organização e diagramação impecáveis, tudo é belíssimo e rápido de consultar. O texto é todo dividido em sessões claras, bem definidas, e em geral, subdivididas em bullet-points. É direto ao ponto ao extremo e perde nenhum tempo tentando se justificar.
Discutivelmente, pode não ser o melhor texto para aprender sobre esse tipo de jogo do zero, visto que nada realmente é explicado, as regras são expostas na sua cara, e é isso. Mas eu não consigo deixar de admirar a concisão e a apresentação, é feito como ferramenta de consulta para uma mesa na vida real, e para isso funciona perfeitamente.
A única parte que acrescenta em relação ao B/X original é a opção de usar classe de armadura ascendente (algo que será uma constante nos retro-clones apresentados nesse texto). E, apesar de fazer questão de reproduzir B/X fielmente, não faz questão de reproduzir seus erros e é explícito aonde o texto original era vago, como a diferenciação entre as armadilhas de sala e de tesouros.
O autor é muito ativo, e hoje em dia cria bastante material compatível que puxa para uma pegada mais moderna, a própria série Advanced Fantasy extrapola o OSE básico incluindo ancestralidade dividida de classe e sua zine oficial, Carcass Crawler, traz todo tipo de opções e regras alternativas.
Basic Fantasy Role-playing Game
Notável por ser 100% um projeto aberto de comunidade, com regras completas disponíveis online e livro físico vendido à preço de custo, Basic Fantasy realmente encarna o espírito de um jogo mantido por seus jogadores.
Pode ser considerado de certa forma, um oposto complementar ao OSE, o texto é corrido e um tanto misturado, o que dificulta um pouco para consulta, mas se explica um mínimo o suficiente para ser considerado uma boa introdução a esse tipo de regra. Ainda assim, não perde tempo fazendo proselitismo desnecessário, o que também é muito importante pra mim nesse tipo de jogo.
Novamente, as regras são primariamente baseadas em B/X, e apesar de não fazer tanta questão de fidelidade, incluindo algumas magias novas, reestruturando a progressão em vinte níveis e, é claro, usando classe de armadura ascendente. Ainda é relativamente próximo ao jogo que serviu de inspiração.
White Box Fantastic Medieval Adventure Game
O White Box é um caso interessante, principalmente por ser baseado em um jogo que eu não gosto, Swords & Wizardry, que carrega tudo que eu julgo de pior nesse tipo de jogo, confuso, feio, e perde tempo demais fazendo proselitismo religioso do movimento OSR, que eu pessoalmente detesto.
Felizmente, White Box consegue fazer certo em tudo que seu jogo originário fez errado, destilando seu conteúdo base à apenas o que vinha na primeira caixa base de Gygax e Arneson, hoje em dia conhecida carinhosamente como a "Caixa Branca", temos um jogo enxuto e direto, sendo sincero sobre os buracos que carrega, mas sem ser opinionado demais sobre a forma que jogadores devem preencher esses buracos.
O jogo simplifica os cinco saves originais em um só (mas ainda os carrega como regra opcional), também inverte a CA, benza deusas, e simplifica muitos dos monstros originais de forma a forçar menos uma ambientação implícita.
Old Dragon Segunda Edição
Por mais que os autores insistam que não é exatamente um retro-clone, sejamos sinceras, é compatível com material básico original e é feito explicitamente para carregar a tocha do tema e do espírito dessa linha, e acho que isso é mais do que suficiente para o colocar aqui.
Apesar de algumas decisões de apresentação de um certo mal gosto (gente, é 2023, ninguém usa "raça" mais, mesmo o autor de OSE tá abandonando isso em Dolmenwood, parem de passar tanta vergonha) o texto carrega muitas das regras de casa para D&D básico antigo clássicas como regras oficiais, e faz questão de deixar muitas das antigas "regras escondidas", que ficavam apenas implícitas, como texto explícito, o que melhora exponencialmente sua acessibilidade e clareza.
Um exemplo que eu gosto muito é a inclusão da ideia de usar manobras de combate via ataques comuns, deixando ao critério do alvo o que vai acontecer de fato.
Além disso, o texto traz habilidades de ladino simplificadas e melhoradas via testes de d6, saves mais próximos de jogos mais modernos, CA ascendente, um dado de vida cheio no primeiro nível entre várias outras melhorias de qualidade de vida.
É interessante o quanto esse jogo é "ao contrário" de sua edição original. Ao invés de um 3.5 simplificado como o OD1 era, é basicamente um B/X melhorado, assim não são compatíveis entre si. Felizmente, as regras expandidas oferecem sugestões sobre como fazer as conversões necessárias.
Uma nota sobre o OSR
Pesquisando sobre esse tipo de jogo, você certamente vai encontrar uma minoria vocal que vai insistir que eles devem ser jogados de uma maneira muito específica. Seja feliz, jogue como você quiser e mande essa galera tomar no rabo.
Desde o início dos anos 70, D&D clássico foi jogado por várias culturas de jogo diferentes e nenhuma é mais válida ou verdadeira que a outra. Não deixe nenhum manifestinho pretensioso te dizer o que fazer ou te prender em tabus. Tem muita gente engajada nesses jogos que não tem paciência pra isso. Eu inclusa.