Ennui — Conceito de personagem
Não se deixe enganar pelas aparências e pela natureza da minha antiga ocupação, eu sempre fui uma pessoa muito tímida e insegura, sempre tive muito medo do mundo, e de mim mesma.
Eu entendo que deva ser difícil para a maioria das pessoas entender o que leva alguém a cultuar demônios, mas tente compreender. O dia em que eu conheci o culto de Nossa Senhora nas Sombras tudo pareceu finalmente fazer sentido, eu vi nela um símbolo do que eu queria ser, um caminho para abandonar as minhas amarras e finalmente viver de verdade.
Me entreguei com devoção nesse caminho, e me tornei uma com uma de suas filhas. Não estava mais sozinha, e minha vida realmente mudou, mas, com o passar do tempo, percebi que eu mesma não tinha mudado tanto quanto gostaria. Continuava me prendendo a padrões e assistindo minha vida passar diante dos meus olhos.
Mas um dia, quando a minha fé já estava quase deteriorada e estava prestes a perder o que conquistei, um rumor vindo de terras distantes fez a minha chama reacender. A minha deusa não era mais a Nossa Senhora nas Sombras, mas a Rainha Redentora.
Meu coração se encheu de curiosidade, e acima de tudo, esperança. Se uma deusa pode mudar, o que me impediria de descobrir meu próprio caminho? Não sei para onde vou e o que vou descobrir nessa jornada, não posso prometer muito, mas estou certa de uma coisa, não serei covarde, vou me entregar ao desconhecido e saborear cada batida no meu peito.
Eu sei que terei medo e de que nada será fácil, mas não vou hesitar mais, eu não estou sozinha.
Conceito
Ennui e sua companheira Drenesse nasceram quando eu folheei o Secrets of Magic, suplemento de Pathfinder Segunda Edição que saiu em setembro, pela primeira vez. A nova classe Summoner imediatamente me chamou a atenção, adorei o conceito de uma classe que gira em torno de interpretar uma criatura invocada recorrente e com um nível de profundidade mecânica e narrativa quase tão completos quanto uma personagem em si.
É claro, não pude deixar de notar que uma das sugestões de Eidolon (é assim que são chamadas tais invocações) era justamente um demônio verdadeiro, limitado em forma material por um pacto com sua invocadora. Sendo a pessoa tarada por súcubos que eu sempre fui, pulei no Pathbuilder e me prontifiquei a construir uma personagem baseada nessa ideia.
A herança tinha que ser tiefling, pra que rodar uma demônia só se eu posso fazer duas ao mesmo tempo, afinal? À princípio estranhei o fato de que eu precisava usar magia divina, visto que minha invocação era extraplanar, o que me dava poucas cantrips de dano realmente úteis, resolvi isso com o já velho truque da tatuagem mágica que me fornece Electric Ark e tentando me absorver na ideia de que a personagem realmente está lá mais para fornecer buffs para sua Eidolon do que qualquer outra coisa. Após um relativamente longo, para meus padrões, processo criativo mecânico, não consegui não ficar orgulhosa da minha bonecagem.
Não demorei a imaginar a história por trás da personagem e de onde ela veio, a origem de taberneira explicaria as condições iniciais de como as duas operariam seu pacto inicialmente, uma súcubo não teria dificuldades para encontrar almas sucetíveis a sua influência em tal ambiente. Tudo isso era safadeza demais pra não incluir a Nocticula em algum lugar, imaginei como uma cultista de sua antiga forma demoníaca se sentiria com a notícia de sua ascensão. Tentei levar para uma lado otimista, mas mais focado na curiosidade de descobrir possibilidades novas do que uma simples redenção. O que significa redenção afinal? Drenesse há muito de questionar isso.
Ah, Drenesse, não é mesmo? Nós temos uma literal súcubo verdadeira aqui! Súcubos não são fáceis de escrever, o que eu gosto de pensar que deixei bem claro em um texto anterior. O conceito de fazer uma personagem súcubo em um jogo de fantasia nos moldes clássicos sempre me fascinou, e eu com certeza já tive meu gosto de fazer algumas como NPCs quando narradora, mas uma personagem que de fato acompanha o grupo como aliada nunca foi algo que eu pensei que funcionaria bem, mas curiosamente, e o que eu não sei que foi intencional por parte dos criadores do sistema, muito da ideia de Eidolon facilita bastante esse desenvolvimento.
Enquanto vive no plano material sob um pacto de Eidolon, ela seria apenas tão forte quanto o poder de sua invocadora permitisse, o que é uma boa desculpa para deixar de fora as propriedades mais problemáticas de uma súcubo, especialmente os poderes de encantamento. Alguns veriam isso como um problema, mas eu vejo como oportunidade. Uma alma não se corrompe manipulada por magia, ela precisa pecar sob a própria vontade e livre-arbítrio, assim eu gosto de pensar que Drenesse não sentiria muita falta de tais poderes, especialmente sob a companhia e proteção de quem à princípio ela imagina que seja uma cultista.
Mas Ennui não seria uma cultista por muito tempo, no mais glorioso e libertador dos clichês de fantasia, ela vai decidir viajar e descobrir o mundo. E por mais incrível que pareça, Drenesse não vai se importar muito com isso, e vai aproveitar a oportunidade para testar seus limites e descobrir se consegue “trabalhar” com outros tipos de almas.
Sim, Drenesse ainda é um súcubo clássica e não deixou de se comportar como uma, caótica e maligna em toda sua glória, mas, como também já deixei claro no meu último texto, Golarion permite um delicioso nível de nuance para a natureza do caos. Sempre pragmática e sutil, sabe que ganhará mais almas à longo prazo com cooperação do que com hostilidade, afinal nada é mais prazeroso do que ver a sociedade ruir sob o peso dos pecados dos próprios mortais.
Mas ninguém vive de esquemas e corrupção o tempo todo, nem ao menos demônios. Como Desna em pessoa mostrou em Wrath of the Righteous, “até demônios podem sonhar”. Drenesse terá seus momentos de tranquilidade com Ennui, sentadas juntas próximas a uma fogueira de mãos dadas recuperando seus focus points. Por mais diferentes que sejam, sabem que estão juntas nessa jornada e valorizam seu tempo juntas.
Ennui é uma personagem muito pessoal pra mim, de maneira tão catártica que chega a ser um tanto dolorosa, todos aqui sabem o quanto eu gosto de súcubos e eu realmente coloquei muito carinho na Drenesse, mas Ennui ainda é a personagem jogadora de fato, e nisso ela carrega partes de mim que às vezes eu prefiro esquecer mas sei que preciso enfrentar. Ela não se chama “ennui” atoa, afinal. Ela encarna minha insegurança e ansiedade com a maneira que levo a minha vida, com como ainda tendo a escolher segurança à seguir meu coração em alguns momentos de pressão, mesmo tendo vivido provas concretas de que isso nem sempre é o melhor caminho. Ela teme repetir a mesma covardia que eu jurei que não vai me dominar na vida real.
De certa forma, ela é quase que uma continuação das minhas velhas e clássicas personagens de mulher trans pré-transição, aquelas em que, mesmo que inconscientemente, são feitas para trabalhar os sentimentos de falta de agência que viver dentro da casca de um ovo trazem. Agora representando o fato de que a quebra da casca não é realmente o fim da história, mas um novo começo.
Talvez não seja uma boa ideia ao menos jogar com essa personagem, talvez o nível de sangramento passe bastante do meu limite, mas eu não consigo resistir ao ímpeto de ao menos tentar, o que curiosamente reflete o próprio tema central dela. Eu conheço grandes pessoas narradoras que conseguiriam me manter confortável com o conceito, mas infelizmente sem muitas perspectivas de começar uma mesa em um futuro próximo. Me sinto um pouco mal criando “hype” para a personagem antes de realmente ter esse espaço para chamar de casa, porém gosto de pensar que isso vai acontecer, mais cedo ou mais tarde.
Olhares astutos vão reconhecer alguns traços familiares na arte desse par, ao descrever suas aparências para o sempre fantástico Ariel Nora, reparei que tirei muito de mim mesma e da minha namorada Olivia nessa construção, chegando ao ponto em que eu só mandei um “ah, dane-se” e pedi permissão para usar a sua imagem como referência, o que ela aceitou entusiasticamente. Talvez isso adicione toda uma nova camada de dificuldade na personagem, mas a gente se reconhece bastante na necessidade de ousar e viver a vida como queremos de fato, e dessa vez, sabemos que não estamos sozinhas.