Blueholme e os furries das antigas no RPG
Muitos já me perguntaram “qual é o ponto de mais uma versão de D&D básico de novo”, é verdade que, se você carregar uma visão puramente utilitarista do RPG, a resposta é “nenhum”. Mas eu vejo um jogo como mais do que um pacote de ferramentas isolado de seu contexto e de sua criação, RPG é, acima de tudo, cultura.
Assim, observamos que, mesmo quando conjuntos de regras são muito parecidos, eles apresentam parte da história e da visão de mundo dos autores, mesmo quando não é necessariamente o objetivo explícito do projeto. Ousaria dizer que, justamente por serem parecidos, essas histórias e visões ficam ainda mais aparentes em sua diferenças, e isso é um tanto fascinante pra mim. No espírito de celebrar isso, vamos falar de mais um.
Blueholme Journeymanne Rules
Blueholme, como o nome sugere, é uma versão extendida da antiga caixa azul de John Eric Holmes de 1977, como ela pré-data até a versão B/X de 1981, que é mais comummente clonada, carrega algumas peculiaridades que não são exatamente padrão mesmo no mundo dos retro-clones. Por exemplo, todas as armas causam 1d6 de dano como no D&D original de 1974, assim qualquer diferença entre elas é puramente diegética, o modificador de força não modifica acerto ou dano em corpo à corpo, o modificador de destreza não afeta a classe de armadura, etc.
Além de todas essas idiossincrasias, talvez a peculiaridade mais fascinante desse jogo é sua abordagem do conceito de criaturas, o jogo não tem capítulo de raças ou ancestralidade, a ideia é que o bestiário é esse capítulo.
Gygax tinha uma ideia de fantasia mais próxima de contos de fadas clássicos, em que os aventureiros são representantes do “mundano” e em suas aventuras entravam em contato com e descobriam o “exótico”. Assim acabou formalizando uma abordagem mais antropocêntrica de jogo de fantasia, incorporada pelas “raças” tolkenianas clássicas. Humanos, anões, elfos, etc. Muito “civilizadas” e entrando em conflito com as ditas “raças caóticas”.
Holmes, um autor de pulp e ficção científica de coração, não queria saber disso. É bem documentado que em suas mesas permitia todo tipo de maluquice quando se tratava de ancestralidades para seus jogadores. De dragões clássicos a centauros, seus PJs às vezes eram o exótico de encontro ao mundano e não o contrário. O próprio Holmes contava sobre seu personagem mais longevo, um Dreenoi, criatura insectóide telepática emprestada de Starguard.
Fico feliz com o quão longe os autores de Blueholme foram para honrar esse espírito. As regras para fazer isso não são exatamente super sólidas e requerem um pouco de leitura nas entrelinhas para descobrir como as implementar da melhor forma, mas sejamos sinceras, isso é a norma e não a exceção quando se trata desse tipo de jogo.
Gosto de brincar que Holmes é, de certa forma, o “santo padroeiro dos furries no RPG”. Tanto de maneira literal, afinal, ele de fato permitia alegremente que seus jogadores usassem personagens que eram literalmente criaturas peludas. Quanto de maneira mais simbólica, em que esses personagens são fundamentalmente uma ferramenta de autoexpressão para seus jogadores, mesmo que seja apenas a expressão de o quão legal é jogar com uma formiga gigante telepática.
Isso vai de encontro tanto contra a visão gygaxiana de fantasia quanto a visão que se cristalizou na média do movimento OSR moderno, que em geral defende personagens criados de maneira mais emergente e distante de seus jogadores, o que, deixo claro, não é necessariamente uma coisa sempre ruim, mas é sempre bom reforçar que não é a única forma de jogar esse tipo de jogo. A ideia de jogar com “OCs” coloridos já estava lá desde os anos 70.
Sempre vamos colocar um pouco de nós quando interagimos com o mundo do RPG. Blueholme talvez seja um dos exemplos mais fascinantes disso, demonstrando que mesmo a galera das antigas já tinha um conjunto muito diverso de culturas e tradições, que merecem ser lembradas, revisitadas, remixadas e celebradas.