Beyond the Wall e outras aventuras
Foi só eu prometer que ia falar de Beyond the Wall que o safado do Bruno anuncia que vai trazer esse trem pro Brasil. Podia ter me avisado um tempo antes, pra eu não gastar uma quantidade exorbitante de dinheiro importando a versão gringa, mas fazer o quê.
Sobre Beyond the Wall
A existência desse jogo é um pequeno milagre, parando pra pensar. Alguém que sabe de onde vem as origens e as inspirações do jogo, e de como elas se relacionam historicamente, certamente vai imaginar que o conceito é uma grande contradição incapaz de funcionar, mas por uma série de motivos que eu vou elaborar ao longo desse texto, funciona.
Beyond the Wall é fundamentalmente um jogo baseado nas versões clássicas de D&D básico, mas puxando sua ambientação implícita e explícita para o lado de obras de literatura de fantasia como as de Ursula K. Le Guin, Susan Cooper e Lloyd Alexander. Eu confesso que não sou muito familiar com as obras desses últimos dois autores, mas passei as últimas semanas comendo os livros de Terramar da Le Guin, e se tem uma coisa que eu sei sobre ela, é que ela detestava o tipo de tradição literária em que D&D clássico se baseia, e assim fazia o possível e o impossível para subvertê-la.
As histórias de Terramar não pintam um mundo em que homens “civilizados” saqueiam terras antigas “inabitadas”, que na verdade fervilham de habitantes que são considerados menos que humanos. Ao invés isso, temos histórias introspectivas de pessoas que, por mais que sigam em longas e traiçoeiras viagens, ainda são fundamentalmente enraizadas em suas comunidades e sabem, ou eventualmente aprendem, como essas são valiosas. Não é um mundo de uma pseudo-Europa medieval com traços de conquista do velho oeste americano, é um mundo em que habitantes de uma polinésia fantástica navegam por uma vida para eventualmente encontrar a si mesmos.
Le Guin era tão dedicada a essa visão que não perdoou nem uma adaptação do estúdio Ghibli por resumir os conflitos de suas histórias a um inimigo personificado que podia ser simplesmente morto. Sabendo disso, tentar fazer um D&D clássico de Terramar soa como o maior dos sacrilégios. O autor de Beyond the Wall, no entanto, demonstra, por caminhos sutis e outros não tanto, que isso não é tão impossível quanto parece.
Um mundo de comunidade
A forma de criação de personagens padrão do jogo é feita por via de “playbooks” que na verdade se parecem mais como um sistema de lifepath de Traveller, várias tabelas são roladas, guiando os valores de atributos, feitiços, habilidades, etc, mas sempre os associando a elementos da vida e da comunidade da personagem. Algumas tabelas até influenciam ligações entre as personagens, e locais e pessoas de sua vila que tem uma importância pessoal para as duas são definidos.
Assim, de uma maneira que subverte as expectativas de um jogo “OSR” comum, você não somente começa com uma vida e uma história, mas com uma vida e uma história dignas de serem valorizadas e protegidas.
Isso se entrelaça com os cenários de jogo que, também dispondo de várias tabelas similares, criam situações de risco e conflito nessa comunidade. O mundo a ser interagido com não é um mundo distante a ser pilhado impunemente, é, de maneira geral, o seu mundo, mesmo em seus aspectos fantásticos.
Um mundo de magia
O jogo separa os antigos feitiços de D&D clássico em truques, feitiços e rituais. Até aí, nada novo sob o Sol, vários jogos contemporâneos o fazem, o interessante aqui é como isso é feito.
Magias clássicas como gerar neblina e bola de fogo, ao invés de feitiços instantâneos, se tornam rituais de longo tempo de preparação. Isso as transforma de armas táticas para armas estratégicas. Não existem mais para se livrar de uma enrascada no calor do momento, existem como uma ferramenta para, com o tempo e a segurança de sua vila, se preparar para um ataque a sua comunidade. Isso é especialmente temático, no primeiro conflito do primeiro livro de Terramar, o ainda jovem Gavião levanta uma neblina, com muito custo, para confundir um grupo de saqueadores kargineses que ameaçavam matar seu pai, e todas as outras pessoas que jamais conhecera.
Assim, a magia se constrói como elemento, às vezes sutil, às vezes impressionante, mas sempre usado com o peso da responsabilidade.
Um “OSR” diferente
Acho que ficou claro até aqui que essas mudanças afastam o jogo da maioria dos fetiches de design do mundo do OSR, mas não para por aí. A criação por playbooks garante que toda personagem comece com uma distribuição de atributos respeitável, e cada classe tem um passo de dado de vida a mais do que os jogos clássicos em que se baseia. Assim existe uma expectativa de competência e sobrevida. O jogo ainda é mais letal que alguns contemporâneos de tradições mais modernas, mas humor aqui não é o de funis sádicos de mortes em rápida sucessão. O jogo também não “fica de cu” sobre testes de atributo, formalizando o uso destes para situações gerais e jogando fora os testes de d6 estáticos quase arbitrários do D&D clássico, o que funciona muito bem atrelado a forma mais contida de geração de atributos via playbooks.
Talvez por esses e outros motivos, esse jogo infelizmente não figura entre as principais referências do zeitgeist da comunidade nos últimos anos, mas pela criatividade e identidade forte, também não é facilmente esquecido. Pode-se notar o que eu acredito que seja um toque de sua influência em jogos mais recentes, como Dolmenwood, que também se aproveitam das mecânicas clássicas de um velho B/X para explorar outros mundos, histórias e narrativas.