Atributos e Perícias: Capacitismo e Complexidade

Vitoria Faria
3 min readJan 30, 2021

--

Dois conceitos muito difundidos em jogos de interpretação de papéis são os atributos básicos e as perícias. São peças fundamentais na construção de personagem não somente no “maior RPG de todos os tempos” e seus clones, mas em diversos sistemas com as mais variadas mecânicas.

A aplicação (ou a não aplicação) de tais conceitos em um jogo pode trazer implicações em seu desenho que nem sem sempre são óbvias a primeira vista, e assim merecem discussão e reflexão.

Atributos

Os atributos definem a proeza de um personagem em alguma capacidade básica abstrata de uma pessoa, como força, destreza, inteligência ou sabedoria. Possivelmente uma herança dos jogos de guerra dos quais muitos dos primeiros jogos de interpretação de papéis se originam, os atributos simplificam e abstraem as capacidades humanas ao máximo.

O que raramente era visto como um problema em jogos em que cada jogador comanda batalhões de personagens, em jogos em que cada jogador foca em um único personagem, tal nível de abstração leva a uma problemática já muito discutida nesse meio. O capacitismo implícito na ideia de que um personagem pode ser “inteligente, em geral”, ou no seu inverso “burro, em geral”, quando se trata de atributos mentais.

Alguns jogadores que deixam seus atributos influenciarem em demasiado suas interpretações, acabam sendo incentivados a cair em estereótipos problemáticos de pessoas neurodiversas, o que pode ofender ou, no mínimo, gerar desconforto para algumas pessoas na mesa.

Perícias

Um elemento de desenho que pode aliviar essa questão são as perícias, habilidades mais específicas, geralmente ainda atreladas aos atributos, mas que carregam um elemento de especialização na criação de um personagem. Dois personagens com o mesmo nível de inteligência podem ter níveis diferentes em perícias atreladas a este atributo, como história ou investigação, sugerindo que pensam de maneira diferente e estão aptos a resolver problemas diferentes, ou até o mesmo problema com uma abordagem diferente.

Porém, a introdução de perícias em um RPG que já conta com atributos básicos inevitavelmente introduz um nível de complexidade ao sistema. Agora os jogadores tem duas camadas de abstração das capacidades humanas para levar em conta, o que dependendo dos sistema pode se tornar confuso, intimidando novos jogadores e assim diminuindo a acessibilidade do jogo.

Apenas Atributos

Existe uma tendência em muitos nichos de desenvolvimento de jogos de mesa que foca na busca de acessibilidade e simplicidade acima de outras questões de desenho. Especialmente entre jogos alternativos que procuram focar mais em interpretação do que em mecânicas de interação.

Ainda assim, por diversos motivos, alguns desses jogos procuram emular alguns elementos de jogos mais antigos, entre eles os atributos básicos, mas eliminando a camada das perícias para simplicidade.

Esta é uma decisão de desenho válida e que apresenta notável sucesso, mas deve ser tomada de maneira consciente, sempre acompanhada de uma discussão, levando em conta o capacitismo intrínseco previamente abordado.

Apenas Perícias

Uma abordagem que eu pessoalmente prefiro, mas infelizmente não vejo em muitos sistemas, é eliminar a camada dos atributos e manter apenas as perícias.

É uma forma simples de diminuir a complexidade e se afastar de muitas implicações capacitistas em apenas uma decisão.

É claro, atributos (geralmente) são poucos e perícias (geralmente) são muitas, então um sistema que mantém as segundas ao invés dos primeiros dificilmente será tão simples quanto um que mantém os primeiros ao invés das segundas. Então tais compromissos não são equivalentes.

Jogos de interpretação de papéis precisam fazer a árdua tarefa de abstrair, simplificar e sistematizar interações humanas reais em algo que possa ser aprendido e aplicável de maneira divertida, então não existem decisões perfeitas e completamente livres de problemáticas. Porém, é sempre importante que tais decisões sejam sempre acompanhadas de discussões para que sejam tomadas de maneira verdadeiramente consciente.

--

--

Vitoria Faria
Vitoria Faria

Written by Vitoria Faria

(ela/dela) - Súcubo dorky que gosta um pouco demais de jogos de mesa - Faz outras coisas na vida, mas raramente fala sobre - Travesti, sáfica e poliam

No responses yet