A Súcubo de Pathfinder Segunda Edição: Uma análise temática
Você deve estar imaginando “é a Vitoria arrumando uma desculpa para falar sobre demônias safadas de novo” e você está absolutamente correto!
Tendo isso em vista, existem muitos conceitos interessantes a serem conversados tomando esse texto como ponto de partida, então coloquem um yakisoba de legumes em seu círculo mágico mais próximo e descubram comigo o que torna essas ínferas tão especiais, e o que, a partir de sua temática, pode ser explorado envolvendo a evolução de abordagem de questões problemáticas em RPGs de mesa.
O pecado da luxúria destrutiva
Não é escopo desse texto explicar em detalhes a origem do mito das súcubos, nem vou gastar tempo descrevendo o que seria uma súcubo (você pode ler o próprio bestiário, talvez?), porém, não acredito que seja muito difícil defender que é uma criatura de histórico muito sensível, que talvez nasceu da própria repressão sexual culturalmente imposta pela sociedade ocidental.
A luxúria é dos mais fascinantes entre os pecados clássicos, talvez por quão estranha seja a demonização (hehe) do desejo intenso para qualquer pessoa que não está conectada a linhas de pensamento mais conservadoras, que insistem em criar malabarismos de linguagem para tentar nos convencer de que é mesmo uma coisa ruim independente de contexto.
A equipe envolvida neste bestiário certamente levou isso em consideração. No texto da súcubo em si isso é trabalhado de maneira sutil, a luxúria em si não é o pecado aqui, mas a luxúria destrutiva é.
O que separa os dois conceitos é mais especificamente trabalhado na descrição de outra criatura no mesmo bestiário, claramente criada para conversar com o texto da súcubo: Gancanagh, azata da paixão.
Gancanagh são encarnações boas do desejo e do amor livre, que muito especificamente detestam ser confundidos com súcubos e vão te desafiar para um duelo de espadas se você fizer isso. A sua existência remove algumas implicações desafortunadas da natureza da realidade dentro da ambientação.
Acredito que o diálogo entre os conceitos das duas criaturas fortalece bastante o texto da súcubo aqui. Não é mais uma ameaça vaga e questionável, existe um foco claro em sua área de atuação, e de que porque ela é perigosa.
O conceito de gênero
Súcubos, como qualquer outra criatura mitológica carregada de gênero, costumam carregar algumas implicações transfóbicas pertinentes ao essencialismo de gênero, potencializadas pelo fato de que também é uma criatura carregada de sexualidade.
Não é difícil encontrar descrições de súcubos em jogos mais antigos que as descrevem como sempre mulheres, mas o que significa uma criatura sempre pertencer a um gênero específico, e que conclusões podemos tirar sobre a realidade de ambientações que as descrevem assim?
Imagine um pobre súcubo homem em tal ambientação, por mais esforço que ele faça para defender sua existência, vai sempre existir um texto, escrito por criaturas extra-planares que descrevem seu universo, que afirma com a autoridade de quem rege as regras da existência que ele sempre será uma mulher. A partir disso eu sinto que não preciso aprofundar muito sobre como esse tipo de abordagem pode ser dolorosa para uma pessoa trans. Talvez isso seja algo interessante de explorar em um texto futuro.
Observem como isso é evitado no texto da súcubo em questão (e, claro, também no do Gancanagh, se tiver essa curiosidade). Olhos destreinados podem se concentrar primeiro na sentença que descreve o conceito de gênero como algo fluido para essas criaturas, o que em si é muito interessante, se encaixa na temática, e merece uma análise própria. Mas primeiro, nos concentremos em como suas “formas verdadeiras” são descritas.
A maioria das súcubos tem uma forma verdadeira feminina. A palavra mágica aqui é maioria. À princípio parece sutil, mas faz toda a diferença do mundo. É um compromisso que todo o texto de Pathfinder Segunda Edição que envolve criaturas carregadas de gênero carrega. Súcubos tendem a ser mulheres, mas um súcubo que não seja não é apagado aqui. O pobre súcubo dos parágrafos anteriores não teria sua existência necessariamente confrontada em Golarion.
Esse certamente não é um compromisso perfeito, e fico muito curiosa sobre como esse tipo de abordagem evoluirá com o passar dos anos. Mas faz o mínimo de não excluir vivências trans de seu texto, o que, infelizmente, é comum no mundo dos RPGs de mesa.
Usando magia apenas se persuasão falhar
Temas envolvendo consentimento geram muita discussão atualmente. Não por acaso, pois a tradição dos RPGs clássicos na abordagem desse conceito sempre foram, na melhor das hipóteses, problemática.
Magias de encantamento são infames nessa análise. Há quem defenda que a prática de afetar e alterar a mente de outra pessoa diretamente é algo tão abominável que nem os piores vilões deveriam ser trabalhados em torno disso. Súcubos possuem acesso a tais poderes aqui, inclusive o particularmente infame Dominate. Existe a implicação de que não é a abordagem padrão, mas algo usado apenas em último caso, mesmo assim, ter apenas a implicação é um tanto tímido demais pra mim.
Materiais adicionais elaboram sobre como não faz muito sentido para uma súcubo desrespeitar o livre-arbítrio de uma pessoa, afinal uma alma não é corrompida de fato se não estiver agindo por conta própria. Ainda assim, seria positivo ter isso mais explícito no bestiário base, uma coisa que a descrição da súcubo de D&D 5e faz um pouco melhor (devo fazer um texto sobre elas também?).
Não julgo quem se sente confortável em abordar tais temas em suas mesas com o consentimento de todos os envolvidos. Eu mesma já mandei muita Suggestion por aí. Mas sempre defenderei a importância de abrir o diálogo sobre a possibilidade de mundos de fantasia livres destes conceitos.
Qualquer outro desejo
Abrir o leque de alavancas pelas quais súcubos conseguem manipular os mortais opera um trabalho múltiplo: ajuda a torná-las mais versáteis narrativamente, e subverte a perigosa noção, também desagradavelmente comum em círculos mais conservadores, de que existe algo especialmente e intrinsecamente mais pecaminoso no desejo sexual, se comparado a outros anseios humanos.
Tal versatilidade também cria casos de uso para a criatura além de temáticas sexuais, que, como já discutimos, podem não ser essencialmente mais problemáticas, porém possuem um histórico de abordagens preguiçosas dentro dos jogos ditos tradicionais, o que absolutamente também conversa com questões envolvendo consentimento. Muitas jogadoras não se sentem confortáveis com temas sexuais em suas mesas, o que, independente de motivo, deve ser sempre respeitado.
Espiãs, assassinas e sabotadoras
A partir disso, é trivial dar as súcubos seu próprio lugar no mundo, um lugar amplo o suficiente para oferecer possibilidades, mas ainda claro e focado o suficiente para expressar um tema.
Já comentei uma vez sobre como nunca de fato usei uma súcubo em um contexto sexual em uma mesa de RPG, não por qualquer pretensão moralista, mas por sempre me sentir direcionada a outros usos que me permitem seguir com as histórias que eu queria abordar, mas quem sabe um dia?
A Natureza do Caos
Nunca vou deixar de amar essa singela nota explicativa à direita do texto. Permitir nuance e maleabilidade a conceitos que às vezes parecem absolutos é, na minha vivência, uma das partes mais divertidas de jogar e narrar RPG, há quem prefira se ater a temáticas mais simples e fixas, mas mundos que não se prendem a uma essência imutável são os que mais me instigam, e ouso dizer, tem mais a dizer sobre o próprio mundo em que vivemos.